Minha filha era linda. Loira, de olhos azuis. Puxou ao pai - nada da minha pele morena ou dos meus cabelos negros. Sempre sorridente, pele delicada, um bebê gordinho, cheia de dobras nas coxas e nos braços, que chamava a atenção de todos na rua. Cheirosa… Cheiro do talco de neném que eu passava insistentemente nela. E com um cabelo ótimo para fazer chiquinhas coloridas.
Quando ela chegou, eu era muito, muito menina. Por isso quase ninguém que eu conheço hoje em dia sabe da existência dela. Um grande segredo involuntário meu, dos amigos mais antigos e da minha família. E hoje me deu uma saudade tão grande dela… Que resolvi falar. Tive uma filha. Linda. Perfeita. Uma graça de menina.
Vivi para ela enquanto esteve comigo. Comprei vestidos, fiz papinhas, levei pra passear. Conversava com ela, cantava pra ela, dia e noite. Ela dormia comigo, na minha cama - o bercinho ficava tão longe… Preferia ela nos meus braços. Ninava, dava banho, pintava o rostinho dela, brincava com as mãozinhas, mostrava pras amigas - que também levavam suas filhas para nossos encontros. Ela tinha um nome, tinha uma chupeta, tinha um xale - que foi meu -, tinha um posto na minha família, tinha um lugar no meu coração. Meu irmão não podia tocar nela sob pena de ser socado brutalmente. Minha mãe às vezes gostava de sentar para ver televisão com ela no colo - talvez porque isso fizesse ela se lembrar da filha que teve quando tinha a minha idade… Oito, nove anos.
Minha filha tinha sentimentos. Sentia dor, sentia fome, sentia sono. Eu jurava que podia escutá-la chorando, assim como jurava também que notava a variação de expressões faciais que ela fazia. Era uma adoração total. Uma ligação profunda. Quando eu estava aborrecida ou chateada, de um jeito que me impedia de contar a mais alguém o que se passava comigo… Era com ela que eu falava. Ela me ouvia, em silêncio. E depois, no abraço que nos dávamos, tudo se resolvia, meu coração ficava leve. Minha filha, meu amor. Talvez o primeiro amor que eu escolhi sentir na vida.
Pedi pra minha mãe comprar um pacote de fraldas descartáveis, pra eu poder trocá-la sempre que quisesse. De vez em quando, minha vó costurava pra ela vestidinhos tão pequenos e delicados que tenho medo até de tocar, hoje em dia. Algumas vezes, dei um jeito de levá-la escondida pra escola - uma dessas vezes me valeu uma advertência. Levava à casa dos parentes, aos parques, ao cinema, aos passeios que fazia com meus pais. Quando alguém perguntava quem era aquele bebê no meu colo, eu dizia, é minha filha. Minha adorada filha…
Aos poucos, minha boneca começou a se desgastar. Ao contrário de um bebê de verdade, ela não crescia, mas envelhecia. Caiu um braço, rasgou o vestidinho, quebrou a chupeta. Meu pai a consertou, minha mãe a costurou, mas não adiantava muito. Um olho dela não fechava mais. E os cabelos ficaram duros e secos de tanto que eu os penteei. O carrinho dela, o bercinho, o xale, tudo começou a se desintegrar. Como se desintegravam os sentidos que guiavam a minha infância, pelo menos naquele momento. Aos poucos, ela foi deixando de dormir na minha cama, de ir comigo a todos os lugares, de assistir televisão conosco na sala, de comer na mesa. Por uns dias, ela ficou sendo um enfeite na cama. Depois, morou uns tempos dentro da caixa de brinquedos. E, aos poucos, bem aos pouquinhos, ela foi morrendo pra mim. Tudo para que eu crescesse. Tudo para que eu me tornasse uma mulher de verdade. Minha filha morreu por mim… Pelo meu bem. Só uma filha seria capaz de tamanho sacrifício por sua mãe.
Um dia, eu tinha uns doze anos… Minha mãe disse, “vou doar os seus brinquedos pra alguma criança que precise… Eles estão lá apenas juntando poeira.” Concordei. Na hora, me lembro bem, senti algo tremendo dentro de mim… Lembrei da minha filha. Fui até lá, dei um último banho nela, consertei a cabeça, vesti o melhor vestidinho que ela tinha… E dei. Ela se foi. Quem sabe para ser a filha de outra garota.
No meio daquelas crises graves de adolescência, eu me lembrava da minha filha. Queria tanto que tudo voltasse a ser como antes. Minha mãe percebeu, e, nas vésperas do meu aniversário de 15 anos, disse que ia me dar um presente especial. Quando vi a caixa grande, abri com a voracidade de uma criança. Segurei aquela boneca, que era igual a minha antiga filha, como quem quer segurar o tempo pra ele não passar. Tentei brincar um pouco com ela… Não dava mais. E foi então que a guardei dentro do armário. A salvo, como guardei a salvo as lembranças da minha vida de menina.
Hoje, vendo a Mônica( minha irmã ) brincar com a minha boneca, penso que é bom saber que certas coisas nunca mudarão. Meninas continuarão tendo suas filhas, amando-as, cuidando-as, aprendendo a amar um brinquedo pra depois aprender a amar uma pessoa. Por enquanto, estou apenas emprestando. Logo vou dar de presente pra Mômo uma boneca só dela. Porque a minha filha… Ah, eu sódarei pra minha outra filha… Que um dia eu vou ter
Nenhum comentário:
Postar um comentário