domingo, 18 de maio de 2008

DE MOLHO

DE MOLHO


Uma vez caí feio e torci o tornozelo. Foi coisa séria, torci dos dois lados de uma vez.
Ele ficou inchado, enorme, roxo, cheio de hematomas. Era uma dor terrível, às vezes doía tanto que deixava de doer, eu nem sentia mais. Fui socorrida, me levaram ao médico, ele examinou… E foi fatal: gesso, analgésico, anti-inflamatórios e repouso, muito repouso. O doc disse: “esse pé você não pisa no chão pra absolutamente nada.
Tudo que você precisar peça aos outros. Se você não me obedecer, vai ficar com sequelas pro resto da vida”.

Claro, eu não obedeci. O analgésico, forte, entorpecia e tirava a dor, maquiava a gravidade da coisa. E eu achei que estava ótima. Me dava um nervoso absurdo ficar ali deitada, sem fazer nada, sem poder andar. A vida correndo lá fora e eu ali parada, doente. E se eu fosse insubstituível? Quem ia fazer as minhas coisas por mim? Pra que tanto repouso? Sentia cada minutinho do tempo escorrer pela minha mão e isso me dava um faniquito. Sem falar que me era revoltante a idéia de depender dos outros, de ver os outros com dó de mim. Comecei a dar uma pisadinha aqui, outra ali… Em pouco tempo estava andando com o pé engessado pra lá e pra cá, e quando voltei ao doc…
Broncas e mais broncas. O pé estava pior e não ia sarar se eu não fizesse repouso, pouco adiantava o anti-inflamatório. Eu, claro, não obedeci de novo. Mais uma semana e o pé estava mais horrível ainda. Pedi a ele que tirasse o gesso, ia trabalhar assim mesmo. Não queria mais ficar de repouso. Ele, a contragosto, tirou, mas disse: “as coisas machucadas têm o tempo certo pra se curar. Não adianta correr contra isso, o tempo tem que passar você querendo ou não… Caso contrário você vai ter sequelas pro resto da vida.” Eu insisti, e como o tornozelo é meu… O gesso foi tirado, sob inúmeros protestos.

Doc recomendou 30 sessões de fisioterapia no mínimo. Fui a duas e desisti. Eu, a super mulher, estava curada, pra que aquela frescura toda de exercícios lentos, luzes, ondas magnéticas, choques térmicos? Bah. O importante era se mexer, mesmo que mancando. Comecei a andar, pegar ônibus, subir escada. Fiquei com aquele pé inchado durante meses e até hoje, tal como o doc tinha dito, ele dói quando faz frio, incha quando faz calor. Nunca mais vai ser o mesmo. E tudo por causa da minha teimosia.

Por que eu não queria ficar de repouso? Todo mundo fica doente de vez em quando. É legal ser cuidada e bajulada pelos outros, é bom sentir as pessoas preocupadas com a gente, é bom dar um tempo. Por que essa necessidade de estar bem o tempo todo?
Que problema tem em ser fraca, em sofrer, em admitir que tropecei? Por que querer evitar o sofrimento a qualquer custo? O que de tão assustador ele tem? O sofrimento é tão ilusório e passageiro como a felicidade. As pessoas caem, se machucam, erram a pisada e se estrepam. Todo mundo passa por isso. E não tem nada de mal em sofrer de pé quebrado de vez em quando. E muito menos de cotovelo dolorido.

As coisas machucadas têm um tempo de ser curadas, o doc avisou. A gente pode passar por cima, mas a realidade é essa. Com os machucados da alma também é assim. A gente tem que ter paciência pra eles curarem totalmente, e ainda aceitar que vai ficar uma cicatriz. Precisa ter paciência pra juntar os caquinhos e colar pedacinho por pedacinho. E ainda aturar a idéia que, mesmo assim, nunca mais vai ser a mesma coisa. Sem falar no medo e na constante insegurança de pisar com firmeza no terreno em que antes se caiu. Em resumo… É complicado. É difícil. É sofrido. É cansativo.
Mas faz parte da vida. E gente grande de verdade passa por isso com dignidade, não foge. Não sei por que cargas d’água eu tinha esquecido dessa lição.

Acho que já está mais do que na hora de deixar de ser teimosa, parar de meter os pés pelas mãos… E dar um tempo pra mim mesma, antes que eu faça mais besteiras e magoe mais corações além do meu. Ficar em repouso. Quieta, curando.

E é isso. Estou de molho, fechada pra balanço. E posso voltar atrás quantas vezes precisar.

Às vezes tenho vontade de bater minha cabeça na parede.

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